Há momentos na vida pública em que as palavras ditas revelam mais do que a intenção do orador, desnudam o pensamento, expõem a lógica e testam a sensibilidade de quem fala diante da dor humana. A entrevista recente do dirigente Manuel Homem à consagrada jornalista da RNA, Vânia Varela, ilustra com precisão esse limite entre a defesa institucional e a perda de empatia.

Confrontado com uma pergunta simples, mas moralmente contundente, sobre o que sentiu ao saber que uma cidadã foi morta por um tiro nas costas quando fugia da polícia, Manuel Homem respondeu com frieza burocrática: “Esta é a narrativa da Vânia. A Vânia não consegue provar que a senhora levou o tiro pelas costas.”

A resposta, mais do que uma discordância factual, soou como uma negação da própria realidade. A jornalista reagiu: “O vídeo é claro, tem uma senhora a correr…”. Ainda assim, o dirigente insistiu na retórica defensiva: “Esta é a narrativa que foi construída para os cidadãos.”

Ao reduzir um episódio de violência letal a uma “narrativa”, Manuel Homem cruzou a linha que separa o discurso político da insensatez. A partir desse ponto, já não se discutia o contexto de um protesto ou o comportamento da vítima, mas a própria humanidade do agente público diante da morte de uma cidadã indefesa que corria para salvar a sua vida e a do filho.

Um governante pode e deve defender as instituições. Mas quando o faz negando o óbvio, justificando o injustificável e insinuando que a vítima era culpada por estar num “acto de vandalismo”, o que se destrói é a confiança pública.

O Estado tem o monopólio do uso da força, mas esse poder só é legítimo quando exercido com proporcionalidade, transparência e responsabilidade. Quando um dirigente relativiza a morte de uma cidadã, não está apenas a desrespeitar a vítima; está a ferir o pacto moral entre governantes e governados.

Todos vimos o vídeo. As imagens desmentem as palavras de Manuel Homem, pois Ana e o outro cidadão foram atingidos pelas costas enquanto fugiam da polícia. Não se vê qualquer indício de que, naquele momento, estivessem em acto de pilhagem ou a levar bens saqueados. Mesmo que houvesse infracção, a lei não confere à polícia o poder de julgar e executar; confere-lhe o dever de proteger e deter.

E ficam as perguntas:

Por que razão não houve um inquérito sério?
Por que se usaram balas reais contra civis desarmados?
Por que razão, nas imagens, não se vê qualquer acto de pilhagem?
E por que a polícia disparou directamente sobre pessoas em fuga, em vez de tiros de advertência ao ar, como manda a prudência e a lei?

O dia em que Manuel Homem relativizou a morte de uma mulher baleada pela polícia foi o dia em que cruzou a linha da insensatez. Porque há perguntas que exigem mais do que respostas políticas: exigem humanidade.

Por M. Bragança

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