O General Higino Carneiro apresentou-se hoje, terça-feira, 9, numa audição antecipada, à Procuradoria-Geral da República às 7h40. A audição começou às 8h30 e só terminou por volta das 17h15. Nove horas de perguntas, nove horas de sombras, nove horas de um processo que, oficialmente, nasceu de uma “queixa privada”. Oficialmente. Porque, em Angola, o “privado” raramente é privado, sobretudo quando o Serviço de Informações e Segurança do Estado (SINSE) aparece a entregar notificações à casa do visado, acompanhado por um procurador. Coisas que só acontecem quando o Estado quer parecer particular.
REDACÇÃO PORTALTVNZINGA.COM
E o bode expiatório? Um nome escolhido com a elegância habitual das nossas instituições: Adriano Mendes de Carvalho, actual governador do Zaire, que surge como o queixoso oficial. Mas ninguém no corredor do poder acredita que seja ele o verdadeiro motor do processo. Há sempre uma engrenagem invisível, mas muito activa, a soprar queixas nos ouvidos certos.
A figura central por trás da acusação chama-se Rui Carlos Marinho, empresário, dono da RCMJ. Um nome que o grande público desconhece, mas que, subitamente, ganhou protagonismo numa lista de causas que, de um momento para o outro, passam a ser tratadas como urgentes e patrióticas. Em Angola, há pessoas que esperam anos por justiça; outras, basta um telefonema certo para terem prioridade absoluta no balcão da PGR.
Mas o elemento mais saboroso deste enredo é a famosa lista de viaturas atribuídas na época em que Higino Carneiro era governador de Luanda. Uma lista que agora ressurge com ares de revelação bíblica, como se ninguém soubesse que a política angolana sempre funcionou também com base em favores motorizados.
Entre os contemplados, surgem nomes que dariam para montar um mini-congresso do MPLA:
1. Mário Pinto de Andrade, então 2.º Secretário de Luanda, hoje Secretário para a Reforma do Estado, Administração Pública e Autarquias do MPLA.
2. Esteves Hilário, hoje Secretário para Informação e Propaganda do MPLA.
3. Mara Quiosa, actual Vice-Presidente do MPLA.
4. Dionísio da Fonseca, então vice-governador de Luanda, hoje ministro de Estado e Chefe da Casa Civil do Presidente da República.
5. Sérgio Luther Rescova, então Secretário Nacional da JMPLA.
6. Milca Caquesse, activista social.
7. Naulila André, actual administradora municipal do Kilamba Kiaxi.
8. Nelson Funete, ex-administrador do Icolo e Bengo.
9. Isaías Domingos da Cunha Mateus (Isaías Kalunga), presidente do CNJ.
A lista será actualizada porque, em Angola, listas nunca chegam completas na primeira versão. São como séries: deixam sempre um gancho para a próxima temporada.
E agora? Estes que receberam as viaturas vão fazer parte do processo de investigação da PGR? Ou vamos assistir à habitual coreografia institucional que poupa figuras de relevo como o actual ministro de Estado e Chefe da Casa Civil do Presidente da República e os actuais responsáveis do MPLA citados acima?
É interessante observar como, de repente, essas viaturas atribuídas no passado ganham vida nova, não por indignação moral, mas porque alguém precisa de mostrar serviço antes do Congresso do MPLA. A justiça em Angola tem um relógio próprio: anda devagar quando o povo sofre; acelera quando a luta interna pelo poder exige espectáculo.
E aqui chegamos ao ponto central: tudo isto acontece no exacto momento em que Higino Carneiro é pré-candidato ao cargo de Presidente do MPLA. Coincidência, dirão os ingénuos. Sincronização perfeita, dirão os que conhecem o país.
Quando o aparelho precisa de enviar recados, nunca falta criatividade judicial. E, como sempre, escolhem-se bodes expiatórios, acções privadas que parecem públicas, agentes privados que se comportam como públicos e procuradores que surgem como actores secundários num filme cujo argumento ninguém assume ter escrito.
Enquanto isso, o “Velho”, como lhe chamam os seus próximos, passou um dia inteiro a responder a perguntas. Mas há uma pergunta que fica deste lado, sem resposta: se existe realmente tanta urgência em apurar responsabilidades sobre viaturas distribuídas há anos, quando será aberta investigação aos desvios actuais, às obras fantasmas de hoje, às compras públicas de ontem e à promiscuidade político-empresarial que todos conhecem, mas ninguém toca?
Ou será que só há justiça quando alguém ameaça subir demasiado na escada do poder?
Há processos que nascem da lei e há processos que nascem do medo. Cabe ao leitor decidir de qual dos dois este parece ser.
PRIMEIRA TEMPORADA
CARLOS ALBERTO


